Pouca gente se sente à vontade para falar sobre o fim da vida. Ainda é um tema que desperta desconforto, silêncio ou mesmo resistência nas famílias brasileiras. Mas, aos poucos, essa barreira começa a ser superada e, curiosamente, é nos cartórios que esse movimento ganha força.
Com o avanço da legislação e da tecnologia, os cartórios de notas passaram a oferecer ferramentas que garantem o direito à autonomia mesmo quando a pessoa não pode mais se manifestar. É o caso das Diretivas Antecipadas de Vontade (DAVs) e da Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO), dois atos notariais que refletem escolhas profundas sobre o cuidado com o corpo, a saúde e a vida — até mesmo depois da morte.
As DAVs, também chamadas de testamento vital, permitem que uma pessoa registre oficialmente, por meio de escritura pública, como deseja ser tratada em caso de doença terminal, coma ou qualquer outra condição que a impeça de expressar sua vontade. O documento pode incluir a recusa de determinados tratamentos, o desejo por cuidados paliativos ou até a nomeação de alguém para representá-la em decisões médicas. É uma forma de preservar a dignidade, mesmo quando já não se tem voz.
Já o AEDO, regulamentado pelo Provimento nº 151/2023 do Conselho Nacional de Justiça, é um passo decisivo no estímulo à cultura da doação de órgãos no Brasil. Com ele, qualquer pessoa pode manifestar oficialmente sua vontade de ser doadora, validando o ato com firma reconhecida em cartório. A autorização pode ser feita de forma presencial ou online, através do site www.aedo.org.br, e fica disponível para consulta por hospitais e equipes de saúde no momento em que a decisão for necessária.
No Maranhão, essas medidas começaram a ser implementadas com apoio da ANOREG/MA, que tem promovido a conscientização da população sobre a importância de registrar esse tipo de decisão. A capital São Luís foi palco de uma mobilização em favor da doação de órgãos, com participação de diversos órgãos públicos e entidades de classe. Um dos momentos marcantes da ação foi a lavratura do AEDO pelo servidor público aposentado Aldeon Ribeiro, de 64 anos, um dos primeiros a formalizar a decisão no estado.
“Eu e minha família já tínhamos esse pensamento, então foi tranquilo. É um gesto simples, que pode ajudar muitas pessoas”, afirmou Aldeon, que realizou o ato no Cartório do 2º Ofício de Notas de São Luís. “Tem quem ache mórbido, mas eu encaro com naturalidade”, completou. Sua fala revela um tipo de coragem pouco habitual, a de lidar com a morte com responsabilidade e generosidade.
A experiência de Aldeon ajuda a iluminar o potencial dos cartórios como espaços não apenas de formalização de documentos, mas também de acolhimento à vontade humana. Para muitas famílias, ter uma DAV ou um AEDO registrado é o que permite tomar decisões difíceis com mais clareza, amparo legal e emocional.
O presidente da ANOREG/MA, Devanir Garcia, reforça esse papel social. “Essa nova atribuição dos cartórios permite dar maior publicidade e segurança jurídica à vontade do cidadão em doar seus órgãos”, disse durante o evento. A expectativa é que, com o avanço dessas práticas, cresça também a confiança da sociedade em registrar seus desejos e facilitar a atuação de equipes médicas e familiares em momentos delicados.
Ainda em processo de difusão por todo o país, DAVs e AEDOs representam uma mudança cultural importante. Eles oferecem ao cidadão o poder de decidir sobre si mesmo — algo tão fundamental quanto pouco exercido. Em uma sociedade que começa a entender que cuidar da vida inclui preparar-se para o fim dela, esses atos notariais surgem como pontes entre o desejo e o respeito, entre a autonomia e o acolhimento. Mais do que documentos, são ferramentas de amor, consciência e responsabilidade.