Em um dos estados que mais têm avançado na erradicação do sub-registro civil de nascimento, uma juíza resolveu transformar suas ações em palavras, diagnósticos e propostas. “Sub-registro e Agenda 2030: A eficácia das unidades interligadas” é o título da obra lançada recentemente pela magistrada Jaqueline Caracas, do Tribunal de Justiça do Maranhão. Mais do que uma dissertação acadêmica, o livro é um retrato da realidade e, ao mesmo tempo, uma convocação.
A motivação nasceu de uma inquietação: por que, mesmo com o direito ao registro garantido e gratuito, tantas pessoas no Brasil — especialmente no Maranhão — ainda viviam sem identidade formal? Durante sua atuação à frente da Coordenadoria de Correições e Inspeções, entre 2017 e 2020, a juíza se deparou com histórias, números e ausências que não se apagavam com o fim do expediente. “Era difícil compreender por que tantas pessoas permaneciam indocumentadas. O que estava falhando?”, questionava-se.
Nos últimos anos, o Maranhão tem se destacado nacionalmente pelo avanço expressivo na instalação de Unidades Interligadas de Registro Civil. Em 2020, o estado contava com 39 unidades implantadas. Hoje, são 124 em pleno funcionamento, presentes em maternidades públicas e estabelecimentos de saúde de todas as regiões. Trata-se de um crescimento de mais de 200% em apenas cinco anos, número que posiciona o Maranhão entre os primeiros colocados no ranking nacional de cobertura, segundo levantamento do Poder Judiciário estadual.
O impacto dessa política já é visível nos números: o Maranhão alcançou o menor índice de sub-registro civil de sua história. Segundo o Tribunal de Justiça do Estado, apenas 1,38% das crianças nascidas no território maranhense deixaram de ser registradas no primeiro ano de vida. Em 2021, esse índice era de 3,3%. A queda expressiva reflete uma mobilização coordenada entre o Judiciário, os cartórios de Registro Civil e os gestores municipais e estaduais — com destaque para a atuação da Corregedoria Geral da Justiça e o fortalecimento da rede de Unidades Interligadas.
Mais do que um dado estatístico, essa redução revela uma transformação concreta na vida de milhares de famílias maranhenses. O registro civil, quando feito ainda na maternidade, evita o risco de esquecimento, deslocamentos e burocracias que, muitas vezes, afastam pais e mães da formalização do nascimento. Iniciativas como a ação “Registre-se!” e os mutirões voltados a grupos vulnerabilizados têm contribuído para tornar o acesso à identidade civil mais ágil, inclusivo e humanizado. Nesse processo, os cartórios têm atuado não como meros prestadores de serviço, mas como agentes ativos da cidadania.
Foi esse cenário que deu força à tese defendida no livro: se 98% dos nascimentos ocorrem em ambiente hospitalar, é nesse espaço que o ciclo da cidadania deve começar. “Tenho convicção de que as Unidades Interligadas são uma das políticas públicas mais importantes para eliminar o sub-registro”, afirma a juíza. A publicação, construída a partir de pesquisa acadêmica com base na Meta 16.9 da Agenda 2030 da ONU, vai além da teoria e oferece diagnósticos e propostas concretas, com foco no Maranhão.
Mas há um elemento que o livro não deixa de destacar: o papel dos registradores civis. “Muitos deles não apenas aceitaram o desafio, como foram além. Estão presentes, mantêm diálogo com hospitais, monitoram os serviços. Não basta instalar uma unidade, é preciso cuidar dela. E nisso, os registradores do Maranhão têm sido exemplares”, reconhece a juíza. Ela também faz questão de citar a Arpen/MA como peça estratégica nesse processo, atuando na articulação entre cartórios, Judiciário e sociedade.
A obra percorre, ainda, os bastidores do sub-registro que não nasce na sala de parto, mas nas margens da sociedade. Povos indígenas, comunidades quilombolas, pessoas privadas de liberdade e em situação de rua compõem o retrato mais cru da exclusão civil. “Esses são os invisíveis entre os invisíveis. Precisamos de mutirões, de escuta e de políticas específicas. O livro também olha para essas realidades com um enfoque mais humano, sem romantização”, pontua a autora.
Seja pelas páginas do livro ou pela prática institucional, Jaqueline Caracas reforça que o registro civil de nascimento não é apenas um documento — é, antes de tudo, uma garantia de dignidade. E sua mensagem final vai direta ao coração de quem está na linha de frente dessa missão: “Meu recado aos registradores é de entusiasmo e esperança. Esse trabalho muda vidas. O que vocês fazem é dar nome, sobrenome, pertencimento. Não podemos aceitar que existam pessoas que nascem e não existem oficialmente. O Brasil precisa deixá-las visíveis”.
A trajetória da juíza e o crescimento das Unidades Interligadas no Maranhão se encontram em um ponto comum: a certeza de que nenhum avanço é individual. São conquistas construídas a muitas mãos — com dados, com compromisso e, sobretudo, com humanidade.