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Até pouco tempo, qualquer inventário que envolvesse um herdeiro menor de idade ou uma pessoa curatelada seguia um caminho certo: o Judiciário. Mesmo em situações pacíficas, com partilha consensual, sem litígios nem disputas entre os familiares, a simples presença de um incapaz tornava obrigatória a judicialização da sucessão. Esse cenário começou a mudar com a aprovação da Resolução 571/2024 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que alterou a Resolução 35/2007 e passou a permitir que inventários, partilhas e até divórcios consensuais sejam lavrados por escritura pública mesmo quando há interessados menores ou incapazes, desde que cumpridas condições específicas.

A nova norma criou o artigo 12-A, que exige dois critérios básicos: que a parte do herdeiro ou interessado incapaz seja atribuída em parte ideal em cada bem do acervo, e que o Ministério Público dê manifestação favorável antes da lavratura da escritura definitiva. A regra, ao mesmo tempo, em que abre uma nova possibilidade à desjudicialização, impõe mais rigor técnico ao procedimento cartorial.

Para o juiz de Direito e professor Jaylton Lopes Jr., especialista em Direito das Sucessões e autor de cursos sobre inventário extrajudicial, a mudança representa “um avanço histórico, mas que vem acompanhado de cuidados que exigem preparo dos profissionais envolvidos”.

“É uma quebra de paradigma. Até aqui, havia consenso de que a presença de incapaz forçava a ida ao fórum. Agora, com a chancela do CNJ, as famílias podem resolver isso em cartório. Mas a porta só se abre se houver segurança jurídica: o menor precisa estar protegido, e o Ministério Público precisa estar convencido disso”, afirma Jaylton.

Segundo ele, a resolução inovou ao permitir a atuação dos cartórios em casos tradicionalmente judicializados, mas trouxe uma consequência prática pouco comentada: a obrigatoriedade de formação de condomínio entre os herdeiros. Isso porque a resolução determina que o quinhão do incapaz esteja presente em todos os bens, o que impede, por exemplo, a divisão por atribuição direta de um imóvel para cada herdeiro.

“Se uma pessoa faleceu deixando três imóveis e três filhos, sendo um deles menor de idade, não se pode mais dizer: ‘esse fica com o A, aquele com o B e o outro com o C’. Todos agora dividem todos, em fração ideal. Isso gera um condomínio forçado que, mais adiante, pode criar entraves para venda ou uso dos bens, já que qualquer alienação dependerá de autorização judicial, mesmo que os demais herdeiros sejam maiores”, explica o juiz.

Ainda assim, ele considera que os benefícios da nova sistemática superam os desafios. “O que se perde em flexibilidade se ganha em celeridade. O inventário extrajudicial, mesmo com essa nova complexidade, ainda é muito mais rápido do que o judicial. O importante é que advogados, cartórios e o próprio Ministério Público saibam dialogar desde o início.”

O processo, conforme detalha Jaylton, começa com o advogado apresentando ao tabelião um requerimento com a relação dos herdeiros, o plano de partilha e todos os documentos obrigatórios. O cartório, por sua vez, não lavra imediatamente a escritura definitiva, mas sim uma minuta, enviada ao Ministério Público para análise. Só após o parecer favorável, as partes recolhem ITCMD, emolumentos e o ato final é lavrado. Caso o promotor entenda que houve prejuízo ao incapaz, o procedimento é suspenso e remetido ao juiz da Vara de Sucessões, voltando à via judicial.

A medida também teve impacto imediato nos cartórios do Maranhão. De acordo com o vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Maranhão (CNB/MA), Pedro Henrique de Cavalcante, os profissionais estão se adaptando à nova demanda com cautela. “Esse novo artigo muda não só a prática, mas a mentalidade. Até pouco tempo, se havia um menor, o advogado já dizia: ‘isso vai ter que judicializar’. Agora, é possível ficar no cartório, mas isso exige preparo técnico e atenção dobrada”, afirma.

Pedro Henrique destaca que o CNB/MA tem atuado para orientar os tabeliães sobre os cuidados necessários. “O parecer favorável do MP só vem se o procedimento estiver sólido desde o início. O papel do cartório, nesse sentido, é garantir que tudo esteja formalmente correto e materialmente justo. Não é mais apenas preencher um formulário, é entender o caso, avaliar riscos e agir com zelo redobrado.”

Jaylton concorda. Ele lembra que, nesses casos, o advogado da família deve pensar como se estivesse instruindo um processo judicial, ainda que esteja no cartório. “Não adianta apresentar uma minuta sem justificativas técnicas. Em inventários com incapazes, cada detalhe importa: valores atualizados dos bens, comprovação da equidade na divisão, representação legal formalizada corretamente, tudo precisa estar claro. Isso evita pareceres negativos e devoluções.”

Ele também chama atenção para um ponto técnico que costuma gerar dúvidas: a representação dos incapazes no processo. Menores de 16 anos são representados por seus genitores; entre 16 e 18, são assistidos, ou seja, assinam a procuração junto com o responsável legal. Pessoas interditadas ou sob curatela também devem ser representadas por seu curador legalmente nomeado. Esses aspectos precisam ser formalizados desde o início.

“A beleza da norma está em equilibrar agilidade e proteção”, resume Jaylton. “Ela não permite qualquer partilha, desde que técnica, bem feita e justa. O Ministério Público funciona como o guardião do incapaz. O cartório, como facilitador. E o advogado, como elo entre os dois. Se todos fizerem sua parte, o inventário extrajudicial se torna uma realidade segura também nesses casos.”

Apesar dos ajustes exigidos, a nova norma é vista como um marco para o fortalecimento da via notarial no Brasil. “É um passo que reconhece a maturidade dos cartórios e sua capacidade de atuar com responsabilidade também em situações sensíveis”, diz Pedro Henrique. “E é o CNB/MA que tem o papel de garantir que essa maturidade seja acompanhada de qualificação técnica e diálogo com todas as instituições envolvidas”, completa.

A expectativa agora é que, com o passar do tempo, o modelo se consolide e as interpretações do Ministério Público ganhem uniformidade, tornando o processo mais previsível. Até lá, como lembram os especialistas, o segredo está no preparo. Inventariar com menor ou incapaz em cartório agora é possível, mas exige conhecimento, cuidado e cooperação.

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